top of page

Processo criativo

Observe(i).

                               Fui vista.

                                                                  Me vi.

em mim

eu vejo o outro

e outro

e outro

enfim dezenas

trens passando

vagões cheios de gente

centenas

 

o outro

que há em mim

é você

você

e você

 

assim como

eu estou em você

eu estou nele

em nós

e só quando estamos em nós

estamos em paz

mesmo que estejamos a sós.

 

[Paulo Leminski]

“Hoje vi um lagarto. Não um lagarto, uma folha que parecia um lagarto. Não uma folha, uma pedra que parecia uma folha. Então é uma pedra, pensei desinteressado.”

 

“O disforme acaba organizando-se pelas bordas”

 

“Cansei de arrancar a pele das coisas. Dá sempre no mesmo: atrás da madeira, a madeira, dentro do óleo, o óleo, no interior do plástico, o plástico. A natureza é mais repetitiva do que gostaríamos de admitir - é que somos tão repetitivos quanto ela: por trás da ambição, a ambição, no interior do cansaço, o cansaço mesmo.”

 

“O reflexo se aloja no interior do corpo que reflete, como se fosse emitido por ele”

 

“A semelhança é o melhor disfarce”

 

“Tudo o que reflete some. Não vemos o espelho, apenas o que nele reflete. Se o espelho estiver sujo veremos a sujeira sobre ele depositada e não veremos tão bem as imagens refletidas. Quanto mais impura e opaca a superfície, mais identidade ela própria ganha. [...] O que vemos de feltro no feltro é um grau determinado de incapacidade para refletir, um coeficiente de opacidade que chamamos feltro. [...] Quanto mais reflexos, menos propriedade tem um objeto, menos ele se distigue dos demais. A conclusão a que chegamos tem sabor de paradoxo: quanto maior o número de reflexos, mais relações um objeto produz e quanto mais relações mais semelhante ele se torna”  

 

[Nuno Ramos - "Cujo"]

 

 

 

A gagueira de Lászlo, a semiparalisia do corpo, a lentidão do gesto no toque do dinheiro, sua parada final ao lado do monumento, tudo isso faz pensar numa câmara lenta de minúsculas brusquidões, ou numa fotografia tremida, ou num disco riscado, em suma, numa espécie de frustração de um movimento. [...] A primeira questão é se esse mirante da ilha, de onde a cidade se oferece ao olhar de Lászlo como o zumbido longínquo de um campo de batalha, nos é acessível. Ou seja, em que medida podemos nos construir um olho de Lászlo, subir com ele ao mirante da ilha, não só para conseguir acompanhá-lo "terapeuticamente", mas também para poder usufruir desse panorama que supomos ser o seu, para alcançar um novo estranhamento, um alheamento, como aquele que um pintor, um cineasta, um escritor, um estrangeiro nos oferecem, quando estranham nossa própria cidade, quando a diabolizam, ou colorem, ou deformam, ou ignoram, ou simplesmente a poetizam?

 

[...] em nossas instituições de saúde mental assistimos a um outro regime de temporalidade. São guetos lentificados. Seja um paciente que levanta os braços e de repente os imobiliza, suspensos no ar, seja um outro fazendo um gesto brusco para depois mergulhar numa lerdeza sonolenta, ou ainda aquelas falas entrecortadas por silêncios longos, ou os trajetos vagarosos em percursos cuja lógica nos escapa. Às vezes lembra um aquário onde cada um desliza a seu modo, no seu ritmo, a seu tempo. Agora em câmara lenta, desacelerada, dali a pouco numa rapidez inusitada. Uns estão estacionados num passado longínquo, outros jamais saberemos onde estão, em qual tempo; outros ainda, numa instantaneidade aflita, como se nada lhes garantisse a continuidade temporal.

 

Mas, mais profundamente, o psicótico situa-se numa espécie de ponto de horror, anterior mesmo a uma temporalidade, um ponto de parada, de suspensão, em que ainda não está configurada uma imagem do corpo, num estado de inacabamento radical, onde não há contorno nem mesmo para o vazio, onde não há esquecimento nem surgimento. [...] É um ponto que corresponde ao jorrar do tempo. Deveríamos poder estar ali onde começa o tempo, e com ele a possibilidade de alguma forma, de alguma decisão, deixar jorrar o tempo para que possa surgir o bom momento de se fazer alguma coisa.

 

[…] num hospital às vezes é preciso suportar o tempo insípido como se aguenta uma chuvinha triste interminável, sabendo que lá na frente a água acumulada pode irromper uma nascente. Aí pode jorrar um tempo, que nos casos felizes, e por um certo curso de rio, leva quem sabe a uma cascata de vida”

 

Gisela Pankow, por exemplo, diz que para um esquizofrênico construir alguma história precisa estruturar minimamente uma imagem do corpo. "Se conseguirmos relacionar as diversas partes do corpo umas com as outras", diz ela, então o corpo é "habitável", e "a experiência espacial leva à experiência temporal". O homem entra em sua própria história como sujeito apenas através dessa imagem do corpo. O tempo só é acessível via espaço.

 

Na convivência com comunidades de loucos sente-se de fato uma espécie de densa invisibilidade entrelaçada nos objetos, nas pessoas, nos lugares, nas palavras, nos silêncios, e não é precisamente o que está na cabeça de cada paciente, mas entre eles, entre um e outro, entre um olhar e um objeto, entre as palavras e as coisas, entre um som e um retalho, como se esse invisível fosse outra coisa que um oculto, outra coisa que um segredo, outra coisa que um mistério acessível a um sujeito privilegiado. [...] Como se esse invisível fosse essa camada que envolve e permeia as coisas, ou as duplica, ou que lhes dá espessura, ou leveza, ou peso, ou as torna relevantes, miraculosas, fantásticas, inéditas, mágicas, brutas, inertes... Sim, uma camada intensiva, que tem a ver com as imagens mas não deriva delas, que tem a ver com a linguagem mas não deriva dela.


Se até agora a loucura era para o homem essa Exterioridade enigmática, que ele excluía mas na qual se reconhecia, que espelhava tudo aquilo que ele mais abominava mas também tudo aquilo que ele era na sua constituição mais original, o seu Outro mas também o seu Mesmo, agora, diz Foucault, nesse futuro que se avizinha, a loucura deixará de ser esse estranho, essa Exterioridade, essa questão, para incorporar-se ao humano como seu próprio mais originário.

 

[Peter Pál Pelbart - 07 ensaios sobre o tempo da loucura]

“Não são auto-retratos pois não encontro neles a minha “subjetividade” mas sim o meu “plural” que faço comparecer numa espécie de cena. Serão autorretratos? […] posso dizer que são encenações executadas num pequeno, ou por vezes grande, enquadramento (no sentido quadro/teatro) em que apareço como uma ficção. Estas cenas são feitas como se fossem narrativas duma cintilação, aparecimento/desaparecimento, contada com o silêncio da linguagem dos surdos. Projeções que eu quero que contenham o som do corpo profundo. Imagens que contam o que se passa antes da imagem, antes do movimento como pensamento, antes da história e sobretudo antes da intencionalidade. E sobretudo vê-las passadas para a categoria sumptuosa do significante. Quis experimentar num esforço supremo essa zona “vazia” e densa do pré-movimento, do pré-acontecimento com o seu peso escuro e disforme. Numa espécie de penúltima expressão”

 

Ser uma irrealidade. Ser um apelo à possessão de alegrias íntimas. Ser o repouso desenhado. Viver o interior quente duma linha curva. Reencontrar a paz num desenho habitado.

 

“Olhando um dia para os meus quadros nos quais esta dialéctica do dentro e do fora era mais viva, essas duas forças apareceram-me bruscamente como duas formas equivalentes de inércia.”

 

“Tentar abrir um espaço, sair custe o que custar, é um sentimento muito forte nos meus trabalhos. Passou a ser uma questão de condenação e de sobrevivência.  Sinto-me quási sempre no limiar onde esses dois espaços se encontram, esperam, hesitam e vibram. É uma tentação aí ficar e assistir ao meu próprio processo, vivendo um sonho com duas direcções. Mas isso é intolerável e com urgência, qualquer coisa se liberta em mim como se quisesse sair para a frente de mim própria. De toda a maneira já consegui sair pela ponta dos meus dedos.”

 

“Mas agora já não há essa saída delicada e quase ritual “pela ponta dos meus dedos”. Nestes trabalhos quis dar a sentir, por intermédio do meu corpo, o percurso e as marcas da saída rasgada dum ser misto, metade-corpo, metadecoisa, corpo-coisa, corpo-coisa negra, viajando e confundindo-se com o espaço, sendo ele próprio espaço e assim inutilizando a Forma. (...) Quis registá-lo emergindo dum involúcro, a sua antiga habitação que abandona, misturando-se com alegria no negro, formando um todo sem  Forma, vibrante e ofensivo, um espaço que é. Ele move-se deslocando o espaço consigo numa alquimia secreta, com um prazer quase sonoro, deixando no seu rastro uma sinfonia aguda de dois espaços.”

 

[Helena Almeida]

 

CORPO ESCREVE

 

Disserto disfarçadamente. Discorrimento. De certo, faço dessa matéria de palavras uma pausa, que virou outra coisa, que nasceu do vivido. Discreta. Certamente discorro sobre dança, sobre corpo e criação, mas também sobre mim (esse outro), sobre a vida e sobre uma memória que virou presente agora, enquanto escrevo e, agora, de novo, enquanto se lê. Descarto as respostas. Desisto quase diariamente. Descrevo movimentos, experiências e tentativas. Do certo e do errado. Descanso das formalizações. Desperto desejos, em mim, ao menos. Descarada que sou. Desminto depois de mentir. Nem sempre.

Escrever é como falar da experiência de viver, tal como foi, e ainda é, no exato momento em que se escreve. Transformar a vida em matéria de verbo e....

 

Antes mesmo do pensamento pensar,

essa linha reta

reta e vermelha

corre

desesperadamente

para alcançar o seu destino: de ecoar o pensamento.

Fazer dele uma mera brisa inofensiva,

carinhosa comigo.

Coisa que normalmente não é.

Sendo ele,

o pensamento, cruel com a gente

quase sempre,

quando acha que é corpo,

mas não passa de vento.

 

 

Então, lhe pergunto: o que poderia acontecer se eu me sentasse em frente a essa tela e resolvesse lhe escrever algo que ainda não sei o que é? Se eu apenas deixasse esse estado de domingo chuvoso, único dia de silêncio brando na cidade, me atravessar como um impulso do corpo e deixasse de ser estado para virar um dito. Palavras aparentemente tolas que não servem para nada, ao menos para trazer alívio e chamá-las de desejo escrito. Então, me deleito com esses dias que chegam para ficar comigo e eu estou para ficar com eles. Companheira do tempo.

Um momento como esse serve sim para alguma coisa: serve para vivê-lo em segredo - agora - revelado: desejo de dançar, ir ao encontro do silêncio, continuar, assumindo a fragilidade, emancipar e criar outros em mim (transformando-me)! Um desejo de criação, de reflexão, ora, para resistir ao sufocamento do afeto e do prazer, ao que enrijece, ao que inibe, ao que me consome e me apodrece o espírito.

 

[texto próprio]

Fotos-retratos de Gustavo Lemos: http://gust-a.tumblr.com/

Esse acontecimento

vai se dar em silêncio...

[…]

 

esse

silêncio

está preenchido

por um desejo quase

dissimulado de dançar...

 

um quase dançar

que antecede

o dançar

como normalmente

o percebemos...

[…]

 

[Marcelo Evelin]

 

Diário de criação:

                       mini-manifesto

 

  • Os sentidos do corpo são gerados no encontro com o outro, em relação.

  • A dança é gerada no encontro com o outro, em relação.

  • A dança é gerada com o outro, em relação.

  • A dança é o outro, em relação.

  • A dança é outra, em relação.

  • A dança é relação.

  •  

  • Sou aquilo que me afeta e como me afeta.

  • Sou o que me afeta e como afeta.

  • Sou o que afeta e como afeto.

  • Sou afeto e como afeto.

  • Sou afeto e afeto.

  •  

  • Forma e sensação coexistem no corpo.

  • Forma e sensação coexistem.

  • Forma coexiste.

  • Sensação coexiste.

  • Coexisto.

  •  

  • A observação é parte da experiência de criação.

  • A observação é experiência de criação.

  • Observar é experiência de criar.

  • Observar é experiência.

  • Observar é criar.

  •  

  • Corpo e ambiente são forças que atuam juntas.

  • Corpo são forças que atuam juntas.

  • Corpo são forças conjuntas.

  • Sou forças conjuntas.

  • Sou forças.

  • Sou juntas.

 - VÍTREO -                                                                                                                                                                                                         23/09/15

 

 

 

 

não sei. você não sabe...sabe? na rua escuro como já havia sido - olha para o chão. não olhe para os lados. a rua está escura porque os postes estouraram. continue caminhando e olhando para o chão. as pessoas nos bares, ao seu lado, são todas conhecidas. não há mágica. há tempos não caminhava com a cabeça baixa.

 

 

(procuro o buraco onde a palavra tropeça)

 

 

uns olhos que te tiram de ti e te encontram. fundo. quem é você? penso em paixão uma vez mais... não. uma corrente bloqueando a frente me obriga a desviar o caminho. a reta se desfaz, fica curva, torna a fica reta, mas não é a mesma reta de antes. nunca mais será a mesma de antes. nunca é a mesma. é sempre outra coisa.

 

(...)

 

defronte da tabacaria de defronte. a frente invisível. mistério vítreo do outro lado da rua. não é a primeira vez que passo mal numa peça de teatro, é uma daquelas coisas que não cabem em palavras. mas tudo fala, se expressa. falando como filósofo falava: eu falo ~ e todo o silêncio é uma espera pela próxima expressão. há um fundo de silêncio em cada palavra. há dois olhos cheios d'água no escuro.

 

_        _       _

 

 

estou no fundo do oceano. nem meus pés tocam o seu chão nem minha cabeça alcança a superfície (clarevidência de  descartes). um corpo convulsiona em ondas. corpo, luz, som. todo sentido...se abre é sempre uma coisa defronte da outra. um olhar impossível. a vontade de me lembrar de algo conhecido. sem amparo. sem chão. um QUASE-TRAUMA.

 

 

^^^^^^^^^^^^^    ^^^   ^^^^^^^^^^^^ ^^  ^^^^  ^^^^ ^^^^^^^^^^^^^    ^^^   ^^^^^^^^^^^^ ^^  ^^^^  ^^^^

 

 

ela se levanta e diz num tom profético:

                                                                                                  "há uma busca. isso é claro."

 

 

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

 

eu tinha cinco anos quando há vi pela primeira vez fazendo experimentos no nosso quintal. ali nascia a semântica para a palavra ALQUIMIA.

 

[  ]

 

 

eu não estou bem. como só posso falar por mim, te digo: foi como me ver de fora. me ver fora de mim. isso não pode. não pode durar. não é permitido. não se pode se ver vivendo. há os que morrem buscando sua identidade num espelho.

 

 

TRANSGRESSÃO (uma luz vermelha pisca quase cegando meus olhos)

 

 

 

       ...

 

                     ...

 

                                    ...

 

                                                    ...

 

 

ela chega ao pé do ouvido da outra e confessa:

 

                                                                              NÃO QUERO FICAR SOZINHO, MAS SEMPRE ESTOU. ÁS VEZES ME DUPLICO E CHORO,

                                                               DANDO UM PRÓXIMO PASSO NA RUA, MAS NUNCA SEI PARA ONDE VOU. VIM ATÉ AQUI SÓ PRA

                                                               TE VER. NÃO SE INCOMODE E EU CONTINUAR COM OS OLHOS FECHADOS.

 

 

tateando o infinito dos autorretratos, a artista tange o mistério dos seres. cria um mundo onde o limite do fora e do dentro se derrete. ela joga com o risco e brinca com a loucura.

 

                                                                                                                 você me vê

                                                                                                                                 vê minha procura?

 

 

 

no oitavo andar do prédio em frente o homem careca e com barbas desesperadamente grita seu solilóquio - em coro - :

 

 

"CRU VEM DE CRUELDADE

QUE EM BRASILEIRO

PRO NOSSO PESAR

RIMA COM REALIDADE"

 

 

 

 

 

 

                                                                                                                                                                 Caio Jade

 

 

23/09/2015

 

 

 

 

[carta recebida após o espetáculo]

 

 

bottom of page